Petra
Era uma vez uma rapariga.
De dia a rapariga fazia as muitas coisas que as raparigas como ela fazem. À noite sonhava.
A rapariga acordava cedo. Tinha muito sono de manhã e preferiria ficar na cama a descansar o seu corpo magro, mas levantava-se, lavava a cara e os dentes e preparava torradas com leite para todos. Vestia-se e ajudava a vestir. Arrumava, lavava, estendia, apanhava e corria para o trabalho pois tinha um horário a cumprir.
No caminho sentia o seu estômago às voltas e às vezes já nem sabia se o ardor era de fome ou de má digestão. Não teria comido? Ou teria engolido sem mastigar a côdea de pão?
Nove horas e trinta minutos marcará em breve o relógio. E a rapariga desligará o botão das tarefas de casa e ligará o botão das tarefas do trabalho. Irá ter pela frente oito horas de trabalho duro e se não quer repeti-lo ou ser repreendida tem de trabalhar concentrada. Tem de trabalhar como se tivesse dormido a noite toda um soninho descansado e reparador. Tem de trabalhar como se tivesse tomado um banho revigorante; como se se tivesse espreguiçado em frente ao espelho antes de escovar o cabelo; como se tivesse bebido dois copos de água engarrafada e espalhado creme pela cara em pequenos movimentos circulares, suaves, gentis e interessados; como se tivesse tomado um bom pequeno-almoço, nutritivo e vitaminado, mastigado com parcimónia, saboreando cada pedaço de fruta de uma compota fresca espalhada generosamente sobre a torrada fumegante; como se tivesse descido a rua calmamente, aproveitando o ar fresco da manhã de inverno para despertar todos os sentidos, eventualmente, os mais preguiçosos, ainda retidos na terra dos sonhos…
…Chegada à plataforma, a rapariga, com dois ou três minutos de avanço em relação ao comboio, descansa o olhar sobre as pequenas ervas que teimam em despontar entre as pedras de granito do chão da estação. Ao ver a banca de jornais, sente o impulso de comprar qualquer coisa para ler. Fica indecisa entre uma revista de viagens e o diário generalista que hoje tem um suplemento sobre música nacional. Acaba por comprar os dois. Folheia o jornal já no comboio e decide-se a ler um artigo sobre as eleições no país irmão. Tem uma opinião clara sobre o que se está a passar (embora ninguém lha pergunte ou esteja interessado em ouvir…) e dá-lhe uma vontade enorme de rir (ou será de chorar?) tudo o que lê no jornal. De repente, a vontade de rir contida começa a misturar-se com as suas opiniões caladas e mais umas quantas amarguras e injustiças engolidas. E o seu estômago decide rejeitar tudo. A rapariga tenta, desesperadamente, conter o vómito. A rapariga tenta, inutilmente, abrir a janela, depois de procurar, entre toda a tralha que carrega consigo, um saco para fechar tudo o que quer sair do seu corpo e que ela sabe não poder andar à solta. Levanta-se, tropeçando até à porta, e de joelhos no chão da carruagem vomita mesmo em cima do jornal. A rapariga invisível desde que acordou dá, agora, bastante nas vistas. Bocados de pão mal mastigados embebidos em café com leite e bílis cobrem a cara do candidato extremista cujas feições se misturam já com as do jornalista faccioso. E a rapariga, ao mesmo tempo que sente os olhares de repúdio de todos os outros passageiros, pensa em como estas páginas de jornal já foram bem mais nojentas, antes do seu vómito ter tapado todas as obscenidades propagandeadas como verdades salvadoras. Setas mortais contra a dignidade humana. Contra a humanidade. Talvez contra a pouca humanidade que existe já entre os homens.
Ninguém se levanta para ajudar a rapariga. Ninguém lhe pergunta sequer se precisa de ajuda. Talvez ela continue invisível e só as suas entranhas escancaradas nas folhas sujas de papel sejam como luzes de néon para toda aquela multidão cujo desejo último é chegar a horas ao trabalho.
A rapariga faz um embrulho com toda a sujidade e porcaria do jornal e reveste-o com o papel grosso da revista de viagens, na esperança de que a paisagem paradísica de um azul-turquesa pontilhado de coqueiros, remeta, novamente, os olhares crucificantes para os assuntos, em importância inultrapassáveis, dos seus próprios umbigos.
Despeja o pacote de misérias no primeiro contentor que vê, limpa a boca e a blusa, ajeita a madeixa solta do seu cabelo negro e segue para o trabalho.
Passo firme. Alma a cambalear.